Extraído do livro: A supremacia
de Cristo , Fé, esperança e ânimo na carta aos Hebreus.
José Gonçalves.
Comentário
de Hebreus 10.1-39 '
Neste capítulo, o autor continua sua
exposição para consolidar o que iniciara nos capítulos
anteriores acerca da superioridade do sacerdócio de
Cristo em relação ao levítico. Essa
argumentação estende-se
até 10.18. Neste capítulo, há muitos pontos que atuam como uma espécie de
recapitulação do que fora dito anteriormente. Há, todavia, a presença de
elementos novos quando o autor introduz no texto o Salmo 40 e faz uma nova
aplicação da profecia de Jeremias 31.
"Porque, tendo a lei a sombra dos bens
futuros e não a imagem exata das coisas, nunca, pelos mesmos sacrifícios que
continuamente se oferecem cada ano, pode aperfeiçoar os que a eles se
chegam" (v. 1). O autor começa esse versículo com uma declaração que deve
ter provocado espanto em seus leitores — a Lei é uma sombra da realidade, e não
a própria realidade. A palavra grega skian mostra que a Lei é uma sombra ou
projeção de um objeto que é a realidade. Em contraste com a sombra, o autor
coloca a imagem, do grego eikôn, que é o próprio objeto que projeta a sombra
que a Lei representa. A referência, aqui, é ao sacerdócio de Cristo como a
realidade da qual a Lei era apenas uma sombra.
“Doutra maneira, teriam deixado de
se oferecer, porque, purificados uma vez os ministrantes, nunca mais teriam consciência
de pecado" (v. 2). Se, de fato, o sistema levítico fosse eficaz, não
haveria necessidade da repetição contínua de ofertas e sacrifícios. Ele, porém,
demonstrava-se ineficaz porque não conseguia penetrar dentro do homem,
permanecendo apenas uma limpeza ritual.
“Nesses sacrifícios, porém, cada
ano, se faz comemoração dos pecados” (v. 3). É exatamente isso o que o autor
diz que acontecia anualmente no ritual da expiação. Os pecados eram relembrados
ou trazidos à mente outra vez em uma espécie de rememoração. Aqui, o termo
"comemoração” (ARC) não consegue expressar o sentido do original,
anamnesis, que é o de "recordação” e “lembrança”, como traduz a Almeida
Revista e Atualizada.
“Porque é impossível que o sangue
dos touros e dos bodes tire pecados" (v. 4). F. F. Bruce, comentando in
loco esse versículo, diz:
"A contaminação moral não pode
ser removida por meios materiais. O valor espiritual que o ritual sacrificial
podia ter tido residida no fato que era uma prefiguração material ou uma lição
objetiva de uma realidade moral e espiritual “Pelo que, entrando no mundo, diz:
Sacrifício e oferta não quiseste, mas corpo me preparaste" (v. 5). Aqui, o
autor cita o Salmo 40.68 e segue a Septuaginta para referir-se à pré-existência
de Cristo. Deus não estava satisfeito com o culto apenas formalista na Antiga
Aliança e, por isso, mostra aqui a necessidade de um sacrifício superior em
tudo. Cristo daria seu corpo em sacrifício a Deus. Artur Weiser observa que:
"A
rejeição radical de todo o culto sacrificial explica-se, como no caso dos
profetas, pela supracitada percepção da falsa atitude fundamental em relação a
Deus, que encontra sua expressão no culto sacrificial e, pela sua origem e
natureza, nasceu de outra área cultual. O homem não pode, por seus sacrifícios,
situar-se no mesmo plano de Deus, nem ‘colocar em ordem’, pelos próprios
esforços, o seu relacionamento com Deus’’.
“Holocaustos
e oblações pelo pecado não te agradaram" (v. 6). As palavras olokautôma
("holocausto", "oferta queimada”) e peri hamartias ("oferta
pelo pecado”) são uma referência ao cerimonial levítico.
“Então, disse: Eis aqui venho (no
princípio do livro está escrito de mim), para fazer, ó Deus, a tua vontade"
(v. 7). No contexto do Salmo 40, o poeta anseia por uma vida piedosa e
autêntica. Inspirado pelo Espírito Santo, o autor de Hebreus vê nas palavras do
salmista uma referência clara à pessoa de Cristo. É dEle que as Escrituras
fazem referência como aquEle que havia de vir.
"Como acima diz: Sacrifício, e
oferta, e holocaustos, e oblações pelo pecado não quiseste, nem te agradaram
(os quais se oferecem segundo a lei) (v. 8). Mesmo sabendo que o sistema
sacrificial levítico fora instituído por Deus, uma exigência da Lei, o autor
mostra que tal sistema não era a instância final. Se o antigo sistema tinha
caráter transitório, isso significa que Deus havia providenciado algo muito
melhor — o sacrifício de Cristo.
"Então, disse: Eis aqui venho,
para fazer, ó Deus, a tua vontade. Tira o primeiro, para estabelecer o
segundo" (v. 9). O expositor Fritz Laubach comenta com maestria esse
texto:
"A
trajetória do Messias a que se alude profeticamente na palavra do Sl 40.7-9, a
saber, que o Cristo haveria de entregar a Deus o seu próprio corpo como
oferenda para sacrifício, levou Jesus Cristo, de acordo com a vontade de Deus,
à cruz. Dessa maneira, a revelação da vontade de Deus no AT, ‘o obedecer é
melhor do que o sacrificar’ (1 Sm 15.22), obteve sua potenciação e último
aprofundamento. Cristo foi ‘obediente até à morte’ (Fp 2.8) e entregou-se a si
próprio como sacrifício. Nessa obediência extrema de Jesus à vontade de seu
Pai, explica-se também o mistério de sua autoridade na oração. Somente porque
Jesus cumpriu integralmente a vontade de Deus, ele também possui agora plenos
poderes ilimitados, a fim de, como nosso eterno Sumo Sacerdote, intervir
perante Deus em nosso favor, pela intercessão, sem cessar”.
"Na
qual vontade temos sido santificados pela oblação do corpo de Jesus Cristo,
feita uma vez” (v. 10). Um dos aspectos da vida de Cristo que o autor de
Hebreus põe em relevo é o da sua obediência, como Filho, à vontade de Deus.
Esse texto faz eco com Filipenses, onde Paulo diz que a obediência de Cristo
levou-o à morte e morte de cruz (Fp 2.6-8). Essa obediência levou-o a
sacrificar-se pelo pecador. A palavra grega prosphora, traduzida aqui como
oblação, tem o sentido de oferta. Foi por meio da oferta ou sacrifício de
Cristo que nós fomos santificados. A palavra egiasmenoi é um particípio
perfeito no texto grego, que mostra essa santificação como sendo posicionai.
Esse fato é demonstrado pelo uso da palavra ephapaks, que tem o sentido de de
uma vez por todas. Em palavras mais simples, Cristo santificou-nos quando
cremos nEle e continua santificando-nos ainda hoje quando permanecemos nEle. “E
assim todo sacerdote aparece cada dia, ministrando e oferecendo muitas vezes os
mesmos sacrifícios, que nunca podem tirar pecados" (v. 11). Donald Guthrie
comenta esse versículo, pondo em destaque que:
"A continuidade interminável dos
sacrifícios inadequados segundo a velha ordem está em contraste marcante com a
nova ordem. Os aspectos principais de interesse no presente versículo são:
(i) a
posição dos sacerdotes (todo sacerdote se apresenta-lit. "fica de
pé"), (ii) a continuidade dos sacrifícios (a oferecer muitas vezes) e
(iii) sua ineficácia de realizar o seu propósito (i.e, para remover pecados). O
primeiro aspecto tem contraste marcante no versículo seguinte com a posição de
Cristo: assentou-se. Estes sacerdotes nunca poderiam sentar-se porque sua obra
nunca era completa. Em segundo lugar, muitas vezes (.pollakis) está em
direto contraste com uma vez por todas (ephapax). E em terceiro lugar, a incapacidade das antigas
ofertas removerem os pecados é contrastada no v. 12 com a única oferta
de Cristo pelos pecados. Mais uma vez, a fraqueza da velha ordem fica sendo o
pano de fundo para a demonstração da maior glória da nova".
"Mas este, havendo oferecido um único
sacrifício pelos pecados, está assentado para sempre à destra de Deus" (v. 12). O antigo sistema sacerdotal levítico chegara ao fim
quando Cristo, de uma vez por todas e como Sumo Sacerdote da Nova Aliança, fez
a purificação dos pecados.
"Daqui
em diante esperando até que os seus inimigos sejam postos por escabelo de seus
pés" (v. 13). O
autor volta novamente a citar o Salmo 110.1 para pôr em destaque a obra de
Jesus Cristo. F. F. Bruce vê aqui uma advertência do autor a seus leitores para
não serem contados entre os inimigos de Cristo, mas, sim, entre aqueles que são
seus amigos.5 É possível ver aqui também uma citação de cunho escatológico
quando Cristo, na consumação final, porá todos os seus inimigos debaixo de seus
pés (1 Co 15.24-28).
"Porque,
com uma só oblação, aperfeiçoou para sempre os que são santificados" (v. 14). Mais uma vez, o autor volta a falar do aspecto definitivo
da obra de Cristo e, dessa vez, ele usa o tempo perfeito do verbo teleioô para destacar a natureza desse
sacrifício. Cristo completou a obra da salvação no passado, mas seus efeitos
sobre os crentes continuam no presente. Fomos santificados nEle e continuamos
em processo de santificação diária, também nEle.
"E
também o Espírito Santo no-lo testifica, porque, depois de haver dito" (v. 15). O autor fará uma citação do profeta Jeremias no versículo
16, mas, antes, ele põe em realce que a profecia foi dada por inspiração do
Espírito Santo. Com essa observação, o autor consolida sua argumentação de que
ele não está falando nada fora da autoridade divina. O que ele argumentou tem o
selo do Espírito Santo.
"Este
é o
concerto que farei com eles depois daqueles dias, diz o Senhor: Porei as minhas
leis em seu coração e as escreverei em seus entendimentos, acrescenta" (v.
16). Como já havia feito anteriormente (Hb 8.8-12), o autor volta a citar a
profecia de Jeremias (Jr 31.31-34). É posto em destaque o contraste interno da
Nova Aliança com o externo da Antiga. "
E
jamais me lembrarei de seus pecados e de suas iniquidades" (v. 17). Na Antiga Aliança, o antigo sistema de sacrifícios jamais
podia tratar de forma definitiva com o pecado. Sempre havia lembrança deles, o
que era feito anualmente no dia da expiação. Todavia, na Nova Aliança, o sangue
de Cristo tratou de forma definitiva com o problema do pecado, de modo que não
há mais necessidade da repetição contínua dos sacrifícios.
"Ora,
onde há remissão destes, não há mais oblação pelo pecado" (v. 18). Aqui, o argumento
do autor é conclusivo: Cristo
tratou do problema do pecado de forma definitiva. Não havia mais necessidade de
a sombra representar a realidade porque a realidade havia chegado. O sistema
sacerdotal levítico tomara-se obsoleto e chegara a seu fim. A obra de Cristo foi perfeita e
conclusiva. Nesse versículo, o autor encerra a longa discussão que havia
começado sobre o sacerdócio de Cristo. Agora, ele partirá para as implicações
práticas que essa doutrina conduz.
"Tendo, pois, irmãos, ousadia para
entrar no Santuário, pelo sangue de Jesus" (v. 19).
Aqui, o autor tem em mente o santuário interior, o Santo dos Santos, que não
era permitido entrada ao povo e nem mesmo aos sacerdotes, mas somente ao sumo
sacerdote, de ano em ano, para fazer expiação. O autor mostra que, agora, todos
os crentes têm acesso ao Santo dos
Santos pelo sacrifício de Jesus. Essa entrada deve ser feita com ousadia
e confiança nEle.
"Pelo novo e vivo caminho que ele nos consagrou, pelo
véu, isto é, pela sua carne" (v. 20). Jesus Cristo inaugurou um novo
caminho para a presença de Deus. Não mais o antigo caminho, já trilhado pelos
sumos sacerdotes judeus, mas um novo e vivo caminho. Esse caminho anteriormente
desconhecido está agora disponível a todos aqueles que foram chamados. A
expressão kata-petasma, traduzida
aqui como "véu". corresponde à segunda cortina, a que separava o santo
lugar do Santo dos Santos. É essa cortina que foi rasgada quando Cristo deu o
brado na cruz do Calvário (Mt 27.51). Estava aberto, portanto, o acesso à presença
de Deus. Os intérpretes entendem que a expressão "pela sua carne" é
uma referência à vida humana de Jesus quando Ele
apresentou-se a Deus.
"E tendo um grande sacerdote sobre a casa de
Deus" (v. 21). Aqui, a referência ao
"grande sacerdote" remete ao texto de Levítico 21.10, onde está em
vista o sumo sacerdote. Ele era o grande sacerdote. No entanto, aqui o autor
mostra que, no santuário celeste, no qual os crentes agora têm acesso pelo
sacrifício de Cristo, Jesus é esse "grande sacerdote" sobre a família
de Deus.
"Cheguemo-nos com verdadeiro coração, em inteira
certeza de fé; tendo o coração purificado da má consciência e o corpo lavado
com água limpa" (v. 22). O autor tem sempre em mente a
purificação interior que o sangue de Jesus proporciona. A referência ao corpo
lavado com água limpa pode ser uma alusão a Lv 16.4, onde o texto mostra que,
no dia da expiação, o sacerdote "lavava seu corpo com água". Nesse
sentido, o autor estaria dizendo que o cristão já está limpo diante de Deus
pelo sacrifício de Cristo. Por outro lado, alguns intérpretes acreditam que a
referência aqui é ao batismo cristão (1 Pe 3.21).6 De qualquer forma, o que está em
destaque aqui é que o crente está interiormente limpo para entrar na presença
de Deus.
"Retenhamos firmes a confissão da nossa esperança,
porque fiel é o que prometeu" (v. 23). Aqui, os crentes são exortados a manter firme
a confissão ou profissão de fé que haviam feito. A palavra
"confissão", do grego homologia,
aparece outras duas vezes nesta carta (Hb 3.1; 4.14). Em 2
Coríntios 9.13, é traduzida como sendo a obediência ao evangelho que os crentes
haviam professado. Da mesma forma, em 1 Timóteo 6.12,13, é usada
primeiramente em relação a Timóteo, que havia feito a boa confissão diante de
várias testemunhas e de Jesus Cristo, que, diante de Pôncio Pilatos, fez a boa
confissão.
"E consideremo-nos uns aos outros, para nos
estimularmos ao amor e às boas obras" (v. 24). Na caminhada da vida cristã, o
autor lembra que os cristãos precisam considerar uns aos outros. Esse
"considerar" é tido como uma ponderação ou meditação.
É algo no qual se deve pensar. O tempo presente significa que essa deve
ser uma prática, um hábito, e não algo esporádico. No que, portanto, devemos
considerar quando o assunto for as relações interpessoais? Devemos
"estimular" uns aos outros na prática do amor e das boas obras. A
palavra "estimular" no texto grego tem o sentido de
"incitar", "provocar". Quantos cristãos desanimam por falta
de estímulos!
"Não deixando a nossa congregação, como é costume de alguns; antes,
admoestando-nos uns aos outros; e tanto mais quanto vedes que se vai
aproximando aquele Dia" (v. 25). A palavra grega episynagogé, traduzida como
"congregação", é a junção da preposição grega epi (sobre, em adição) com a palavra synagogé (Sinagoga). No contexto do
Novo Testamento, essa palavra ocorre aqui e em 2 Tessalonicenses 2.1 com o
sentido de reunião. O abandono da congregação e o consequente afastamento dos
demais irmãos de fé é um sinal de enfraquecimento espiritual.
O autor exorta seus leitores porque observou que alguns já estavam com esse mau
costume, e isso era extremamente nocivo à comunhão cristã. É um alerta que ecoa
forte nestes dias onde aumenta assustadoramente o número de desigrejados.
"Porque, se pecarmos voluntariamente, depois de
termos recebido o conhecimento da verdade, já não resta mais sacrifícios pelos
pecados" (v. 26). Nesse versículo, o autor novamente
volta à sua exortação sobre o perigo da
apostasia sobre a qual ele já advertira nos capítulos 2, 3 e 6. Donald Hegner
destaca que "as palavras se voluntariamente continuarmos no pecado não se
referem a pecados comuns, mas ao pecado mais grave, o pecado final:
apostasia(...) Esse é o pecado que, pela sua natureza, coloca
o ofensor fora do alcance do perdão de Deus e, portanto, é pecado
do qual não se encontra retomo".7 Aqui,
como fizera em Hb 6.4-6, o autor mostra tratar-se de cristãos verdadeiros, pois
somente cristãos salvos "receberam o conhecimento da verdade".
Se o cristão verdadeiro não pode abandonar
a fé, essas palavras não passariam de uma advertência vazia, totalmente
destituída de sentido.8 John
Wesley acreditava que, nessa passagem, o autor estaria se referindo não a um pecado
qualquer, mas à apostasia, e ele aplicou isso a cristãos. Wesley
entendia que o texto estava se referindo a "qualquer um de nós cristãos" que pecamos contra Deus
por uma apostasia total e voluntaria. Segundo ele, isso acontecia depois de
havermos "recebido o conhecimento
experimental da verdade do Evangelho", e, nesse caso, "não resta mais sacrifício pelos
pecados".9
"Mas uma certa expectação horrível de juízo e ardor
de fogo, que há de devorar os adversários" (v. 27). Para o apóstata, que voltou atrás,
não resta mais nada a fazer, apenas esperar o juízo (Is 26.11).
"Quebrantando alguém a lei de Moisés, morre sem
misericórdia, só pela palavra de duas ou três testemunhas" (v.
28). O autor tem em mente as testemunhas descritas em
Deuteronômio 17.6,7 e 19.15. Em Deuteronômio 13.6-11 e 17.2-7, estão as
referências àqueles que se afastavam de Deus por quebrarem a sua Palavra. O
expositor C. S. Keener observa que:
"os mestres judeus reconheciam que
todo mundo pecava de uma forma ou de outra; mas um pecado com o qual uma pessoa
declarava: 'eu rejeito parte da palavra de Deus', se considerava como
equivalente rechaçar toda a Lei e se reconhecia como apostasia".
"De quanto maior castigo cuidais vós será julgado
merecedor aquele que pisar o Filho de Deus, e tiver por profano o sangue do
testamento, com que foi santificado, e fizer agravo ao Espírito da graça?"
(v. 29). Esse versículo detalha de forma específica o que
é o pecado de apostasia. Em primeiro lugar, é um "pisar" no Filho de
Deus. O vocábulo katapateô tem
o sentido de "pisar", "pisotear". É o mesmo termo usado em
Mt 5.13 para descrever o sal que foi pisado pelos homens por haver perdido o
sabor. Lucas, no terceiro evangelho, usa esse vocábulo para descrever a semente
que caiu à beira do caminho e foi pisada (Lc 8.5). Hughes diz que essa palavra indica tratar algo com o maior
desprezo. Haubeck traduz como "fazer pouco caso". Semelhantemente,
Robertson destaca que se trata de uma "negligência cheia de escárnio, como
em Zacarias 12.3. Veja a mesma ideia em Hb 6.6". Em segundo lugar, o apóstata é alguém
que "profanou" o sangue da aliança. O termo grego usado aqui é koinos, que tem o sentido de
"tomar comum" ou "imundo". É a mesma palavra usada por
Pedro quando teve a visão dos animais limpos e imundos (koinos) em Atos 10.14. Essa palavra também é usada em
Apocalipse 21.27 para afirmar que nada "imundo' entrará na Nova Jerusalém.
O sentido, portanto, é o de alguém que desprezou o sangue de Cristo, não vendo
na expiação, como diz Robertson, nada mais do que "uma religião de carnificina". O
comentarista carismático C. S. Keener destaca que o autor tem em
mente aqui o sangue de Cristo que santifica os cristãos (Hb 9.19-22) e, por
outro lado, a concepção judaica que considerava o corpo de Cristo morto como um
cadáver imundo (Dt 21.23). 15 Em terceiro lugar, o apóstata é alguém que
"ultrajou o Espírito da graça". O verbo grego enybrizo (ultrajou) só ocorre aqui e tem o sentido de
"tratar com muito desprezo, insultar arrogantemente".16 Robertson comenta dizendo que "é uma
palavra forte para expressar o insulto ao Espírito Santo depois de ter recebido
suas bênçãos (Hb 6.4)".17 De forma semelhante, Adam Clarke comenta:
"O
assunto refere-se a um apóstata deliberado – alguém que rejeita completamente a
Jesus e seu sacrifício e renuncia a todo o sistema evangélico. Isso nada tem a
ver com os desviados no uso comum do nosso termo. Um homem pode cair
repentinamente em uma falta ou ainda deliberadamente andar em pecado e, porém,
não rejeitar o evangelho nem negar ao Senhor que lhe comprou. Sua situação é
temerá ria e perigosa, mas não sem esperança. O único caso sem esperança é do
apóstata deliberado, que rejeita o evangelho, depois de haver sido salvo pela
graça ou convencido da verdade do evangelho. Para o tal, já não resta mais
sacrifício pelo pecado, porque já houve um, o de Jesus, e ele rejeitou-o por
completo".18
( veja um estudo completo dessa passagem no Apêndice).
"Porque bem conhecemos aquele que disse: Minha é a
vingança, eu darei a recompensa, diz o Senhor. E outra vez: O Senhor julgará o seu povo" (v.
30). Esse versículo mostra a severidade do juízo divino para as pessoas
descritas no versículo 29.
"Horrenda coisa é cair nas mãos do Deus vivo" (v.
31). Aqui, o autor cita Deuteronômio 32.35,36, onde Deus fala de vingar-se
contra seu próprio povo.
"Lembrai-vos, porém, dos dias passados, em que,
depois de serdes iluminados, suportastes grande combate de aflições" (v.
32). Esses crentes, que haviam sido iluminados (Hb 6.4-6), são novamente
advertidos a fazer um retrospecto das suas vidas na fé. No início de suas caminha
das, eles suportaram lutas e tribulações por amor a Cristo, e esse fato deveria
motivá-los a prosseguir.
"Em parte, fostes feitos espetáculo com vitupérios e
tribulações e, em parte, fostes participantes com os que assim foram
tratados" (v. 33). Não era possível esquecer a
abnegação que demonstraram quando foram submetidos à prova.
Eles foram expostos como espetáculo, vituperados e atribulados, mas, mesmo
assim, permaneceram fieis. Por que retroceder agora?
"Porque também vos compadecestes dos que estavam nas
prisões e com gozo permitistes a espoliação dos vossos bens, sabendo que, em
vós mesmos, tendes nos céus uma possessão melhor e permanente" (v. 34). O
autor faz um elogio ao lembrá-los de que, enquanto ele estivera preso, os
hebreus demonstraram cuidado com ele. E mais: eles haviam suportado com alegria
o espólio de seus bens por acreditarem que possuíam um melhor tesouro no céu. O
que estava acontecendo com essa fé que fora ousada?
"Não rejeiteis, pois, a vossa confiança, que tem
grande e avultado galardão" (v. 35). Toda aquela ousadia, fé e
confiança demonstradas 110 início da carreira cristã não deveriam,
de forma alguma, ser abandonadas. Elas seriam recompensadas pelo Senhor.
"Porque necessitais de paciência, para que, depois de
haverdes feito a vontade de Deus, possais alcançar a promessa" (v. 36). A promessa da Terra Prometida, a Canaã celeste, existe. Ela,
porém, só é alcançada por aqueles que estão dispostos a fazer a vontade de
Deus, demonstrando ser pacientes. A jornada é longa, e o cansaço e a fadiga
podem deixar muitos pelo caminho.
"Porque ainda um poucochinho de tempo, e o que há de
vir virá e não tardará" (v. 37). A expectativa do autor- e também de todo cristão -é que o Senhor retome logo. O tempo não existe
para Deus, pois Ele é o Pai da eternidade; todavia, existe para os homens e, às
vezes, devido às circunstâncias desfavoráveis, ele parece demasiadamente longo.
Urge aguardar nas promessas de Deus.
"Mas o justo viverá da fé; e, se ele recuar,
a minha alma não tem prazer nele" (v. 38). Nessa passagem, o autor
já sinaliza do que irá tratar daqui para frente - a fé. Ele sabe que a fé é o
elemento necessário para permanecermos caminhando na estrada da vida. Deus não
demonstra prazer nos que recuam.
"Nós, porém, não somos daqueles que se retiram para a perdição, mas
daqueles que creem para a conservação da alma" (v. 39). Como havia feito em Hebreus 6.9, o
autor traz uma palavra de ânimo e consolação a seus leitores. O perigo de
recuar, de cair da fé, é real, e não uma hipótese; ele, todavia, demonstrou
como evitar isso. Os que continuam perseverando com
ânimo e fé conservarão as suas almas.
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