“SUBSIDIO TEOLÓGICO” JOVENS LIÇÃO 8” - Autoavaliação e Discernimento, Sim, Julgar, Não (Mt 71-6)

Apesar de desenvolver a lição na linha de que o “julgamento” aludido pelo Mestre refere-se, como a expressão “kpivw aqui julgar no sentido de pronunciar uma sentença [...], condenar”, isto é, “Kpíua [...] julgar, julgamento; aqui sentença (judicial)”,3 deixa entrever, Marcei Dumais afirma que os “dois empregos do verbo grego krinein (julgar), em Mt (5,40; 19,28), não autorizam restringir a proibição só aos julgamentos de condenação”,4 ou seja, a questão seria ainda mais rigorosa do ponto de vista da observação do comportamento alheio e da emissão de qualquer tipo de julgamento, mas na verdade, como observa Benedict Viviano, o “ensinamento de Jesus adverte contra a usurpação do julgamento definitivo de Deus, que é o único que vê o coração”.5 Trata-se de exercer sobre si mesmo um cuidado quando se pensa em “avaliar o comportamento de irmãos e irmãs (cf. v. 5b; 18,15-18)”, diz Dumais, evitando “todos os julgamentos que não se fazem por amor do outro e que o reduzem à condição de objeto (cf. 5,43-48; 22,34-40)”.6 Isso porque, diz o mesmo autor, a “continuação da frase dá a razão a interdição de julgar o outro”, pois o “leitor de cultura judaica percebe logo o emprego do passivo teológico em alusão ao julgamento final”.7 Daí a formalidade do ensinamento, isto é, “não julguemos os outros, para que Deus não nos julgue da mesma maneira, vale dizer, negativamente, no dia do julgamento”. O que está se ensinando é exatamente o que já foi colocado acima por Viviano e, quanto ao “julgar”, no sentido de “avaliar”, só deve ser feito, de acordo com Dumais, “usando a medida do próprio Deus, isto é, o amor e a misericórdia (cf. 18,23-35)”. Numa palavra:

O “Não julgueis” de Jesus é uma palavra profunda, de grande valor. Significa que não se pode identificar ninguém com os atos que cometeu ou com as aparências que reflete. Convida- nos a respeitar o mistério de cada pessoa, cujo conhecimento se reserva para Deus. Para compreender o convite de Jesus, nada melhor que contemplar sua atitude diante das pessoas.

Jesus olha não para julgar, mas para criar. Seu olhar opera o novo naquele em quem repousa, faz-se libertador, recriador.
Tal exortação certamente entristece a muitos que gostam de se passar por rigorosos e cuidadores da doutrina. Zeilinger diz que, a estes, o “aplauso dos leitores é-lhes garantido, pois faz parte do aspecto agradável da vida denunciar publicamente a falibilidade alheia e encará-la com ‘repulsa e horror’”, mesmo porque, continua o mesmo autor agora se referindo ao versículo 3, o “julgamento do outro ‘engana-me acerca das verdadeiras relações, acerca de meu próprio envolvimento com acontecimentos culposos’”.9 A indicação do versículo 5 é a saída para quem quer, de fato, ajudar os outros a corrigir o comportamento: primeiramente devo tirar a grande trave à frente dos meus olhos para, posteriormente, pensar em corrigir o meu irmão. Zeilinger observa mais uma vez que tal perícope está intrinsecamente “ligada, quanto ao conteúdo, à quinta petição do Pai-nosso e ao comentário atinente (6,14-15), não obstante não haver nenhuma correspondência terminológica”.10 Já o versículo 6 é curiosamente enigmático, mas, conforme observa James Shelton, certamente sinaliza para a grande verdade de que, conquanto seja vedado ao discípulo exercer o papel de “juiz”, ele tem a responsabilidade de ter discernimento e saber a diferençar as coisas “santas” e “valiosas” das coisas profanas e vis.11

A Bondade Divina e a Regra de Ouro (Mt 7.7-12)
Apesar de esta porção relacionar-se com o que já se ensinou sobre oração e, particularmente, a respeito da oração de petição (5.44; 6.5- 15), bem como acerca da bondade divina (5.45,48; 6.30-33), nunca é demais lembrar que, a despeito de não haver “necessidade” de que alguém lhe peça algo, certamente é do agrado do Pai que se ore, pois através da oração Ele ensina preciosas lições. C. S. Lewis diz que acredita que um dos “propósitos pelos quais Deus instituiu a oração talvez tenha sido para dar testemunho do fato de que o curso dos acontecimentos não é regido como se fosse um Estado, e sim criado como uma obra de arte para a qual todos os seres dão sua contribuição e (na oração) uma contribuição consciente, na qual todo ser é tanto um fim quanto um meio”.12 Na verdade, a oração, nessa perspectiva, não é somente um meio, como se pode pensar da perícope, mas também, ela mesma, um fim. O que é digno de se destacar desse texto é o fato de que (mesmo que a passagem não diga explicitamente, ela deixa supor) “os que oram se colocam de acordo com o bem, mesmo quando desejam outra coisa que o bem previsto no plano de Deus”, diz Cullmann, e completa que “na oração do Getsêmani, a adição daquelas palavras [...] exprime claramente”13 tal ideia. Para além da verdade de que quanto mais se desenvolve o relacionamento dos filhos de Deus com Ele, mais as petições vão se aproximando da vontade dEle, uma última questão é digna de ser mencionada. Tomando por base os versículos 9 a 11, fica claro que as dádivas, sem a comparação com o texto paralelo de Lucas 11.9-13 que menciona o Espírito Santo, refere-se, nesse contexto, a questões materiais e de subsistência. No entanto, informa B. Viviano:

Buscai: neste contexto, todos os verbos se referem à oração; como em 6,33, deve-se sobretudo buscar o Reino de Deus e a sua justiça também na oração. Em hebraico, “buscar” seria dãras-, daí o termo do misdrásh, estudo” ou investigação das Escrituras. Talvez cientes deste uso mais intelectual, os protocristãos gnósticos, tiraram esta expressão, “buscai e achareis”, de seu contexto e usaram-na para justificar suas especulações teológicas. No princípio, os Padres da Igreja resistiram a esta aplicação do texto, mas na época de Agostinho foi usada também pelos ortodoxos para fundamentar sua reflexão teológica.14

Se no passado o conhecimento em relação às línguas, hebraica e grega, limitava uma interpretação mais aproximada do contexto e o método alegórico era o mais utilizado, atualmente, com os grandes avanços na área das ciências bíblicas, tais utilizações do texto não se justificam.15 Entretanto, tal informação deixa duas pistas importantíssimas: o quanto há de conclusões doutrinárias baseadas em equívocos interpretativos provenientes do período Patrístico que as novas gerações de teólogos precisam dedicar-se a resolver e o quanto a igreja deve ser sensível no sentido de permitir que se façam revisões sérias, responsáveis e com temor, visando à edificação da própria comunidade de fé.
Em relação ao versículo 12, a regra de ouro, Viviano diz que, do “ponto de vista literário, este é o fim do sermão, um resumo de seu conteúdo antes da conclusão com as maldições e bênçãos da aliança”.16 Apesar de ela não ser original de Jesus Cristo, como informa Shelton,17 nem em sua forma negativa bem como em sua forma positiva, conforme utilizada pelo Senhor, a grande novidade é que, ao ser inserida pelo Mestre no Sermão do Monte, o ensinamento do célebre sermão transforma a regra e, por sua vez, a regra de ouro coloca em relevo aspectos decisivos do Sermão do Monte. Tal circularidade hermenêutica, conforme disserta M. Dumais:

No SM, Jesus apresenta os critérios do verdadeiro amor.
A ausência da cólera que fere (5,22s) e do julgamento que condena (7,ls), o gesto que constrói, em resposta ao gesto maldoso (5,38), o amor aos inimigos que chega até o perdão (5,43s; 6.12-15), tais são os critérios de um verdadeiro amor humano, dado ou recebido. Se encaramos a regra de ouro como expressão condensada do programa ético novo proposto por Jesus, cabe-nos, então, compreender que é ela “a Lei e os profetas tais como reinterpretados (ou cumpridos”, 5,17) por Jesus”. Todo ensinamento do SM, do qual a regra de ouro é o remate, dá a esta um significado novo. Poder-se-ia parafrasear, da seguinte maneira, a regra do agir em relação aos outros: “tudo aquilo que desejaríamos nos fizessem os homens”, vale dizer, não nos ferir com sua cólera, não nos julgar, amar-nos ainda quando sejamos seus inimigos..., em resumo, acolher-nos e tratar-nos como filhos do Pai, isto é, comportar-se a nosso respeito como nos trata o Pai. O “tudo” (panta) da regra de ouro do SM está realmente repleto de sentido.

É preciso não esquecer que, a despeito de esta ser a “justiça dos discípulos” a audiência de Mateus é composta de judeus e, por isso, a Lei e os Profetas, sobretudo em um contexto onde ainda não havia o texto do Novo Testamento, era justamente essa literatura que vigorava e de onde os apóstolos tinham de extrair os ensinamentos. O que parece ficar centrado na pessoa, pois o conteúdo da regra coloca o “eu” como paradigma, na verdade, havendo acontecido a metanoia, ou seja, a conversão da mente e do eu pela mensagem do Evangelho, tal como se vê no início com as Bem-Aventuranças, faz com que o “modelo do agir dos filhos e filhas, perante seus irmãos e irmãs em humanidade, é o do agir do Pai em relação a cada um deles”. Em termos diretos, o “agir do Pai, em relação a nós, revela-nos nossas reais necessidades (o que deve ser o objeto do querer’ formulado em 6,12a) e, consequentemente, as reais necessidades dos outros (o que deve ser objeto do fazer formulado em 6,12b)”.19 Assim, é com um “eu” completamente transformado pela perspectiva da nova justiça, da justiça do Reino, que o discípulo olhará para o próximo. Mas como a regra de ouro pode dar relevo ao ensinamento do Sermão do Monte?

Colocada como conclusão do corpo central do discurso, a regra de ouro salienta certos aspectos do comprometimento ético do discípulo. Podemos notar as seguintes: 1) o convite a “fazer tudo” pelos outros é um apelo que as diretivas do SM tocam na totalidade da existência e visam a compromissos concretos; 2) o destinatário: “os homens”, as pessoas humanas, indica que o horizonte de compromisso do cristão é universal; 3) a formulação positiva da regra de ouro sublinha que o discípulo deve tomar a iniciativa de executar gestos de amor, em conformidade com os mandamentos de 5,38-48; 4) ao apresentar, como norma de ação, os anseios que se fazem em causa própria, a regra de ouro propõe, em seguida, a via da interioridade como guia do amor aos outros (“a alteridade”): procurar o melhor em si mesmo é um meio de descobrir o comportamento que o amor prescreve nas situações concretas; assim, a exigência radical de amar aos inimigos não deixa de ser um “amor inteligente”...

Tal conclusão leva agora o discípulo a tomar decisões cruciais. Conquanto seja um problema aos predestinacionistas, tais textos revelam justamente o que os que acreditam no livre-arbítrio já sabem: a decisão de fazer conforme se deve, é do discípulo, mas este deve buscar força, em Deus, o Pai, que o chamou, pois, conforme escreveu Frankemõlle, citado por Zeilinger, ‘“Desde o início (cf. 5,3-16), o tema do ‘Sermão da Montanha era: Deus é o fundamento que possibilita o agir humano”’.21 Assim, após ter aprendido doutrinariamente o que significa o novo tempo, o discípulo agora tem de praticar a sua justiça. Quanto a isso, mesmo que não tenha sido possível dissertar mais pormenorizadamente a respeito das metáforas utilizadas (algo que foi feito no comentário da revista), elas são de caráter prático e não mais se exigem grandes discussões teóricas para se entendê-las. Chegou a hora da verdade, o momento crucial de o discípulo optar por viver à luz da nova justiça, da justiça superior, ou da religiosidade que prescreve uma receita, mas não tem como fundamento o amor e sim a “lei”.

As Duas Portas e os Dois Caminhos (Mt 7.13,14)
Por mais que se queira interpretar esse texto como sendo o caminho do mundanismo, e tal aplicação não estaria errada, no contexto, a “porta larga” e o “caminho espaçoso”, são as dezenas de propostas político-religiosas da época que ofereciam a “oportunidade” de os judeus seguirem sem precisar de fé, mas apenas confiando na filosofia proposta pelo respectivo movimento. Optar pela justiça do Reino era decidir pela “porta estreita” e pelo “caminho apertado”. Consequentemente, tais movimentos, e seus respectivos líderes, deveríam ser abandonados, sem nenhum meio-termo (cf. Mt 15.1,14). Era uma decisão muito séria, sobretudo, quando se sabe que o povo era dependente do “judaísmo da época de Jesus, [e este era] conduzido pelos fariseus, [e] toda a tradição mantida pelos escribas servia de norma para a fundamentação da vontade divina”.22 É o que instrui o Mestre na sequência.

Os Falsos Profetas e os seus Frutos (Mt 7.15-20)
Os enganadores e falsos profetas sempre foram comuns entre o povo de Deus. Jesus sabe que eles continuarão a rodear, propor caminhos mais fáceis e tentar enganar as pessoas. Assim, Ele instrui que se atente para os seus frutos, pois através destes será possível identificá-los. Na atualidade, tal mensagem é ainda mais necessária, pois as pessoas utilizam critérios suspeitíssimos para se apresentar como “enviadas” e “ungidas” por Deus. A tragédia é que o que certamente seria vergonhoso a um discípulo de Cristo, hoje é motivo de ostentação de muitos líderes e acaba mimetizando os liderados. O critério veterotestamentário de que Deus permitia que um falso profeta realizasse um milagre, para provar se o povo o seguiría depois quando fosse convidado a servir a outros deuses, hoje não mais funciona, pois as pessoas ficam reféns e parecem ainda gostar, pois o próprio líder se coloca como se fosse um “deus” (Dt 13.1-5). Outras pessoas, mesmo depois de o falso profeta “profetizar” algo que não se cumpre, continuam o seguindo como se estivessem cegas (Dt 18.20-22). A estas, o caminho da justiça sempre será evitado.

Uma Séria Advertência aos Discípulos (Mt 7.21-23)
Essa perícope parece demonstrar que o princípio da permissão divina para a ocorrência de prodígios continua válida, mas também indica a possibilidade de alguma coisa ser feita em nome de Jesus, sem ter, obviamente, nada com Ele (Mc 12.21-23; Ap 13.13 cf. Mt 12.24). Portanto, não são as maravilhas realizadas pelo suposto “ungido”, e sim o seu estilo de vida é o que deve ser observado. Se parece com Cristo? Esta é a pergunta a se fazer. Caso não se pareça, ainda que faça cair “fogo do céu”, deve ser evitado.

A Decisão Crucial do Discípulo;
Ouvir e Praticar (Mt 7.24-29)
O não praticar o que o Mestre ensinou no Sermão do Monte não ficará sem resultado, pois levará à ruína. É imprescindível perceber que, a despeito de a Lei e os profetas serem importantes para Mateus, não são estes que farão com que o discípulo esteja firme, mas sim “estas minhas palavras”, ou seja, o ensinamento do Sermão do Monte que o Senhor acabou de proferir. A sua doutrina, o seu ensino, não era como o dos escribas e fariseus, pois a palavra deles era uma interpretação da Lei que apenas matava e inchava, causando dependência no povo. A doutrina de Jesus, diferentemente, veio para dar vida, e vida em abundância. Esta é a mensagem do Sermão do Monte. Qual será a nossa decisão: construir a casa sobre a rocha ou fundamentar-se na areia? Cada um tem de fazer a sua opção, pois a decisão é pessoal.


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