JOVENS (Subsídio Teológico Cap 4/ 2º Trim 2017) Jesus e sua Interpretação da Lei (Mt 5.21-48)

Esta grande porção escriturística, conhecida como “antíteses” de Jesus, cujo número é seis (w. 22,28,32,34,39 e 44),1 constitui, juntamente com sua conclusão, “a ilustração direta do quadro hermenêutico apresentado em 5,17-20”,2 isto da justiça do Reino, explicitada no capítulo anterior. Alinho-me a Cuvillier, na ideia de que não se trata simplesmente de “máximas morais ou, em outros termos, de um ‘mandamento’ (5,18-19), mas é a ‘justiça superior’”3 contraposta à justiça dos fariseus, conforme o entendimento de Joachim Jeremias, anteriormente colocado na introdução. Para o mesmo autor, a “lógica que prevalece nessa passagem é a do excesso” e, continua ele, “se se trata de excesso, do incalculável, o outro não é simplesmente uma pessoa, objeto de um respeito quantificável em vista de um mandamento, mas se torna ‘sujeito’ que encontramos como próximo para além da regra”. Neste caso, Cuvillier explica que a “utilização da hipérbole indica que [tal] palavra [...] não visa à descrição precisa de uma prática, que arriscaria se tornar razoável e a reduzir a ‘justiça superior’ da ordem do Reino de Deus à letra do ‘mandamento’ da ordem deste mundo”.4 O que está sendo dito é que, enquanto o mandamento, por mais objetivo que fosse, não conseguia contemplar as múltiplas formas de o pecado se manifestar, a justiça superior não pode ser convertida em regras, apesar de elas existirem, pois sua abrangência visa ao estado de consciência e aos hábitos do coração. Ela não se contenta com a não concretização do erro e da transgressão, quando qualquer um pode constatar o que de fato ocorreu. Sua atuação baseia-se no amor ao próximo, da mesma forma como Cristo ama a humanidade, um amor sem precedentes, posto que não exige reciprocidade e existe muito antes de o próximo saber de nossa existência objetiva.
É Günther Bornkamm quem lembra que “Jesus apresenta- se como escriba” (apesar de Ele não ter exercido tal atividade oficialmente) e, como prova disso, cita o fato de que até mesmo em questões judiciais de conflito de herança sua opinião, como resposta decisiva, era solicitada (Lc 12.13,14). O mesmo autor diz que apesar de as pessoas se dirigirem a Ele como “Rabi”, “não consta que tivesse estudado’ na escola de algum rabi famoso; seus adversários até o chamam de ‘iletrado’ (Jo 7.15; cf. Mc 6.2)” e sua “ordenação tampouco é mencionada em lugar algum”. Ainda assim, não é possível ignorar que sua atividade se assemelha muito, em algumas ocasiões, a dos escribas, pois “no judaísmo, o mestre é, de acordo com a natureza da lei, ao mesmo tempo teólogo e jurista”.5 E é como um autêntico teólogo, mas também profeta, que Ele disserta acerca da Lei e a reinterpreta, mostrando que a intenção do mandamento visava formar um caráter com a densidade necessária para transformar a mentalidade e o coração do indivíduo, levando-o a ter hábitos e uma filosofia de vida que não fossem orientados meramente pela observação mecânica de regras e mandamentos, mas pela valorização do outro que, mesmo à distância, não deve ser alvo da malícia interior de ninguém. Isto é, ninguém pode ser saudável apresentando-se, exteriormente, como puritano, enquanto cultiva, interiormente, o ódio, a perfídia, a maledicência, os desejos vis, a perversidade, a vulgaridade, a inveja, etc.
Dessa forma, as antíteses de Jesus como justiça do Reino, de acordo com Bornkamm, deixam claro que “a Torá não é mais, como o era para a totalidade do judaísmo, a fonte que única e exclusivamente comunica a vontade de Deus, mas que esta passa a vigorar de modo autônomo e livre na palavra de Jesus”.   Mas tal ocorre porque as  antíteses de Jesus “pode ser tudo, menos o dogma de um iluminista”, isto é, “trata-se, antes, da atualização da vontade de Deus por ele proclamada”,7 e, por isso mesmo, diz o mesmo autor, “elas partem do que foi dito ‘aos antigos’ e que é considerado tradição compromissiva pelos ouvintes, dando-lhe, porém, uma interpretação mais incisiva”.
Numa palavra, e de acordo com o mesmo autor, “Justiça, nos termos de Jesus, significa: não só dar lugar ao homicídio, mas também evitar já sua primeira manifestação, a palavra de ira que escapa contra o irmão; não só não cometer adultério, mas também evitar já o olhar lascivo e a ideia concupiscente e manter o matrimônio indissolúvel”9 e assim por diante. Na verdade, uma vez que a vontade de Deus foi deturpada “em um emaranhado de estatutos legais, tradições religiosas e morais”, a justiça do Reino “liberta a vontade de Deus da petrificação das tábuas da lei e estende a mão na direção do coração humano que se encontra encerrado e assegurado na custódia do legalismo”.10 E por que em direção ao coração? Pelo simples fato de que a chamada “casuística do legalismo judaico”, pontos em que arbitravam e se subdividiam os escribas em suas múltiplas escolas rabínicas, e também por vaidade, acabava por prevalecer, levando a exceção a se transformar em regra. Assim, a referida casuística que “se caracteriza por trançar uma rede com malhas cada vez mais finas, visando capturar toda a vida do ser humano”, acabava gerando um efeito contrário, isto é, a “cada nova malha, ela deixa um novo furo, e com seu zelo para tornar-se concreta, ela, na verdade, deixa de lado o coração humano”. Bornkamm diz que tal ‘“falta de coração’ é inerente a toda casuística” e que, por isso mesmo, as “orientações concretas de Jesus, em contrapartida, estendem a mão pelas lacunas e buracos em direção ao coração do ser humano e atingem o ponto em que sua existência diante do outro e diante de Deus realmente está em jogo”.11 O mesmo autor exemplifica sua tese dizendo que;

Isto se torna claro justamente nas antíteses do Sermão da Montanha. Nelas, a exigência de Deus se torna extremamente
simples. O que o ser humano faz é relativizado de maneira singular, sendo dado todo o peso ao como de seu agir. Isso não significa de forma alguma que o agir não mais seja importante e que só a “mentalidade” tenha valor. Essa distinção entre a ação e a intenção, que se tornou corrente na ética moderna, é totalmente alheia à proclamação de Jesus. Justamente as antíteses mostram que Jesus já considerou a mentalidade como ação; elas têm por objetivo a obediência até à ação concreta; “Quem ouvir estas minhas palavras e as puser em prática...!”. Isto quer dizer: a “relativização” da ação significa, antes de mais nada, que ela é colocada em relação a aquilo que o ser humano na verdade é e quer. Agora ela já não é uma obra que parece comparecer diante do ser humano, assim como a lei já não é um estatuto que pudesse comparecer diante de Deus.  


Uma última palavra de Marcei Dumais torna-se necessária antes de falar sucintamente de cada uma das seis “antíteses”. O referido autor diz não ser apropriada essa expressão para referir- se ao texto objeto de estudo deste capítulo em sua completude, posto que não há apenas contraposições nesse texto e sim também ajustamentos na Lei. Sendo assim, Dumais defende que elas seriam mais bem denominadas como “‘contra-tese’ ou contraste’”. Além disso, uma vez que o “ensinamento de Mt 5,21-48 está expresso em linguagem simbólica e não jurídica: indicajndo] mais uma diretiva e uma qualidade de agir do que um comando de comportamentos determinados”, é incorreto designá-la de “Lei nova”. Desta forma, a divisão dessa porção escriturística, com suas seis perícopes, de acordo com Dumais, seria a seguinte: “Aprofundamento da Lei antiga: ant. 1 (morte / cólera); ant. 2 (adultério / cobiça); ant. 6 (amar seu próximo / amar seu inimigo)” e “Revogação da Lei antiga: ant. 3 (divórcio permitido / nada de divórcio); ant. 4 (juramento permitido / nada de juramento); ant. 5 (lei do talião / nada de talião)”. A explicação é que há exegetas que “concordam em designar as antíteses 1 e 2 como portadoras de um aprofundamento da Lei citada, e as antíteses 3 e 5, como anuladoras desta Lei, ultrapassando-a”. Dumais ainda cita outros intérpretes dizendo que de acordo com eles, “a antítese 4 radicaliza a Lei, que é mantida, e a antítese 6 derroga o texto da Lei, que é enunciado”, enquanto outros acreditam que seja justamente o contrário. O teólogo francês alinha-se aos últimos e diz que “a antítese 4 derroga o direito de fazer juramentos, que se inclui na Lei antiga de cumprir os teus juramentos para com o Senhor’ (5,33)”. Assim, Dumais diz que na “última antítese, Jesus, é verdade, vai na direção oposta da fórmula citada: odiarás o teu inimigo’, mas esta nem procede do A. T.”.13 Esta última observação torna uma vez mais necessária a leitura do apêndice que distingue a Torá da Halaká. Lembrando igualmente que a “justiça” que está sendo contraposta é a dos escribas, intérpretes e doutores da Lei, portanto, dos teólogos da época.

Primeira Antítese
A primeira antítese refere-se ao sexto mandamento (Êx 20.13; Dt 5.17). Nossa tradução do versículo 22 que parece sugerir, à primeira vista, que a ira “com motivo” é permitida, de acordo com Agostinho, os “códices gregos não dizem sem motivo, como aqui se acrescenta, conquanto o sentido seja o mesmo”. Para o Bispo de Hipona, quem se ira contra o pecado do irmão não se ira contra a pessoa e sim contra o ato, no entanto, “o que se ira contra seu irmão e não contra o pecado deste, esse se ira sem motivo”.14 Mas a admiração dos leitores, antigos e modernos, está na rigorosidade apresentada no versículo 22 que parece desproporcional em relação ao que se está fazendo, pois se trata apenas de “injúrias” ou xingamentos sem maiores “implicações”. No entanto, conforme oportunamente coloca Bonhoeffer, a “intenção é atingir, machucar, destruir”, visto que a “injúria consciente ataca a honra pública do irmão, visa torná-lo desprezível também a outros, busca no ódio a destruição de sua existência íntima e externa”.15 Enquanto o juízo se reservava apenas a quem matasse (Êx 21.12; Nm 35.16; Lv 24.17), o Mestre diz que a ira e, seus corolários (as injúrias), já colocam a pessoa sub judice, gerando até mesmo uma gradação — juízo, Sinédrio e Geena —, tal como apreciavam os juristas. No entanto, radicaliza a questão e, à “maneira dos sábios de Israel e dos rabinos, Jesus não hesita em empregar a linguagem retórica do paradoxo e da ironia, aqui e alhures, no [Sermão do Monte] (cf. 5,29.39; 6,3)”.16 Nas palavras de Shelton:

Jesus leva esta regra além dos limites dos seus contemporâneos. Na comunidade de Qumran, a pessoa que usasse linguagem impudente ou blasfema teria sua ração de comida reduzida por até um ano; tal pessoa seria evitada e, em alguns casos, até expulsa da comunidade (Normas da Comunidade 6.23—7.5,15-18). Jesus leva a ofensa ao precipício do inferno. O uso de Mateus da palavra geena com o significado de inferno é tipicamente judaico. No vale de Hinom (do qual a palavra geena é derivada), onde outrora se faziam sacrifícios humanos a deuses estrangeiros, os judeus de Jerusalém queimavam lixo; por conseguinte o lugar tornou-se símbolo de maldição abrasadora e irrevogável.

Os versículos 23 a 26, que aparecem de forma resumida em Lucas 12.58,59, deixam entrever o improvável não apenas para os escribas, mas a qualquer um. Apesar de o fato de a conexão entre culto e reconciliação não ser algo especificamente neotestamentário, posto que a oferenda, como se vê desde Caim e Abel, representa o próprio ofertante, o “novo” da observação de Jesus nesses versículos é a ideia de que se o ofertante souber que o seu irmão tem algo contra ele, sua oferta deve ser suspensa e retomada apenas depois de reatado o relacionamento. O que está implícito é que não se concebe a postura de um ofertante que tem algo contra o seu irmão e ainda assim apresenta-se para ofertar a Deus, como se nada estivesse acontecendo, que conhece a ambos. Isso seria um absurdo. Portanto, não é se o ofertante tem algo contra o outro (pois nem deveria ter!) que a oferta não pode ser apresentada, mas se o outro tem algo contra ele! Isso, independente de que o ofertante esteja “certo” e o outro “errado”. A recomendação é reconciliar-se depressa com o irmão, antes que a querela ganhe as instâncias judiciais, tanto humanas quanto divinas. Nas palavras de Franz Zeilinger, retribuir com amor a “uma pessoa que me quer mal nada mais tem a ver, certamente, com justiça vindicativa, mas antes com o Reinado dos Céus, que, desde agora, determina o pensar e o agir, pois, permite que o mundo humano transpareça numa luz diferente numa luz divina”.

Segunda Antítese
Na segunda antítese, o Senhor considera mais um mandamento, o sétimo (Êx 20.14; Dt 5.18). Não obstante, o décimo também parece ser contemplado aqui quando se fala da cobiça (Êx 20.17; Dt 5.21 cf. v.28). Contudo, conforme Giuseppe Barbaglio, “estava-se longe de colocar a dupla proibição no mesmo plano”.19 Isso porque, conforme já dito por Bornkamm, na justiça do Reino de Deus, a justiça superior, intenção é ação, ato. Quanto à radicalidade dos versículos 29 e 30, evidentemente que não tem um sentido literal, visto que a intenção nas está nos membros, ou órgãos, citados (olho e mão), e sim no “coração”, onde tudo tem início, portanto, a linguagem refere- se a uma demonstração da seriedade do assunto e a forma austera com que se deve lutar contra tais sentimentos egoísticos, visando extirpá-los sumariamente.

Terceira Antítese
Os versículos 31 e 32 não trazem simplesmente uma antítese, mas sim uma revogação. A referida antítese alude ao texto de Deuteronômio 24.1-4 e refere-se à normatização do rompimento da relação conjugal. Em uma sociedade patriarcal e marcada pela predominância masculina, a “carta de divórcio”, ou de repúdio, era um documento que visava proteger a mulher, posto que a partir do casamento ela “deixava” de ser propriedade do pai para se tornar propriedade do marido. Sendo assim, se caso o marido a despedisse sem dar-lhe o “libelo de repúdio”, a mulher não poderia casar-se com outro homem, ficando completamente desassistida, indo parar na mendicância ou na prostituição. Assim, a despeito de tal ato ser uma inovação e representar um avanço no mundo antigo, nessa antítese Jesus despreza tanto a opinião dos escribas adeptos da “escola rigorista de Shammãi [que] interpretava o motivo dado em Dt 24,1 (algo de inconveniente’) como indicador de uma ‘falta sexual”’, quanto a ala dos escribas pertencentes “a escola liberal de Hillel [que]  entendia [Dt 24.1-4] em sentido mais amplo: tudo o que constitui um comportamento desagradável para com o seu marido”.20 Shelton diz tais “comportamentos desagradáveis” incluíam uma simples falta, inclusive involuntária, como por exemplo, queimar uma refeição!21 A questão mais complexa dessa antítese é que enquanto Moisés “autoriza” o divórcio, Jesus o proíbe, mostrando sua autoridade sobre o grande legislador hebreu. Enquanto o primeiro parece ter sido mais flexível, o segundo diz que quem casa com a mulher repudiada, igualmente comente adultério. Algo extremamente inovador, sobretudo, pela responsabilização masculina (coisa raríssima de se ver naquela sociedade). Todavia, há uma exceção para o divórcio22 e esta merece o comentário à parte:

No subsequente estado adúltero da mulher que se casa com novo companheiro, a falta é colocada aos pés do primeiro homem que, de acordo com Jesus, obtém um divórcio frívolo.
Ele precipita um estado adúltero da mulher que se casa outra vez (que então pode não ter tido voz ativa no segundo matrimônio, dado seu estado social). Mais tarde, quando Jesus insistiu nesta visão estrita do divórcio, os fariseus perguntaram: “Então, por que mandou Moisés dar-lhe carta de divórcio e repudiá-la?” Ele respondeu que Moisés tolerou esta prática “por causa da dureza do vosso coração”. Jesus manteve a posição anterior exarada pela lei natural quando instruiu o povo que o Criador designou que o marido e a esposa fossem uma só carne e nunca se separassem (Mt 19.4- 11). Na passagem em foco, Jesus diz que o homem que se divorcia da esposa por qualquer razão, exceto por infidelidade matrimonial, e se casa com outra mulher, comete adultério. A vontade de Deus é a permanência do matrimônio nesta terra.
Assim Malaquias escreve que Deus diz que o casal é uma carne e que Ele “aborrece o repúdio [ou odeia o divórcio]”, sobretudo por causa dos efeitos sobre os filhos (Ml 2.14-16).


O que chama a atenção, particularmente nesta antítese, diz Kümmel, “é que Jesus não apresenta nenhuma fundamentação das Sagradas Escrituras ou da tradição para fazer a afirmação”.24 A questão está mais do que clara na antítese: O padrão divino, retratado neste caso na nova justiça que se contrasta com a dos escribas, é o mesmo do início quando o Criador criou o primeiro casal (Gn 1.27; 2.24 cf. Ml 19.4-6). Mas, ao fazer isso, o Mestre demonstra que a legislação do divórcio (Dt 24) e a tradição dela decorrente são igualmente sentenciados como não correspondentes à vontade de Deus”. Em outras palavras, “Jesus coloca o seu conhecimento e a sua interpretação da vontade de Deus em contraposição à compreensão dessa vontade, representada pela tradição farisaica que se baseava nas Escrituras Sagradas” e, em “procedendo assim, Jesus contradiz mais de uma vez aos textos das próprias Sagradas Escrituras”.25 Aqui, é importante lembrar como o próprio Cristo fez questão de dizer, em mais um episódio envolvendo a controvérsia do sábado, que Davi transgrediu tal lei e os próprios sacerdotes também a violavam, pois o que estava em jogo era a “vida” e esta, como será visto no capítulo 7, é mais valiosa que as regras. Ao final da primeira controvérsia, Jesus acrescentou que Ele era “maior que o templo” e que o “Filho do Homem até do sábado é Senhor” (Mt 12.1-8). Portanto, como Deus, Ele tem todo o direito de desdizer o que havia sido prescrito em uma determinada época e cuja finalidade já tinha cumprido seu tempo.

Quarta Antítese
Nos versículos 33 a 37, há mais uma revogação. Enquanto a Lei não apenas permitia, mas em alguns casos até exigia a necessidade do juramento (Nm 5.19), Jesus contraria terminantemente tal raciocínio. É bem verdade que, conforme o nono mandamento deixa implícito, havia juramentos ou promessas e ainda votos que não poderíam ser revogados sem que isso deixasse de causar prejuízos à pessoa (Êx 20.16; Lv 19.12; Dt 23.21-23; SI 50.14). Uma vez que no “mundo judaico”, diz Barbaglio, “se fazia muito uso do juramento, [ainda que] preocupava-se de evitar o nome de Deus”, os judeus lançavam mão de um recurso adotando “fórmulas substitutivas”,  isto é,
Jurava-se chamando como testemunho o céu, ou a terra, ou Jerusalém. Prestava-se juramento até sobre a própria cabeça.
Grupos judeu-cristãos, apegados aos usos e costumes do ambiente do qual provinham, aplicaram as palavras de Jesus a este problema: qual forma de juramento é lícito adotar?
Assim, [a resposta encontra-se no] texto dos w. 34b-37, no qual é abolida toda forma que, direta ou indiretamente, chame Deus sem causa. Mas admite-se o recurso à fórmula mais simples de juramento, que consiste no repetir a afirmação ou a negação: Sim sim e não não.
Em síntese, na “nova justiça”, na justiça do Reino, o que deve valer é a palavra pura e simples do discípulo, tal como explicita o Salmo 15. Nada mais deve ser requerido da parte de pessoas cujas ações correspondem às intenções e vice-versa.

Quinta Antítese
O texto dos versículos 38 a 42 referem-se a conhecidíssima “Lei do Talião” que possui paralelo na Lei Mosaica (Êx 22.23-25; Lv 24.20; Dt 19.21). Enquanto a convivência em sociedade impunha leis rigorosas que, sabe-se claramente, não se aplicavam de forma igualitária a todos, pois se tal ocorresse não haveria necessidade de outras leis, logo na sequência, para punir os legisladores que privilegiassem o infrator poderoso em detrimento da vítima pobre (Êx 23.6-9). Esta é mais uma que Jesus revoga. E o faz porque sabe que uma lei como esta, dada no passado, com o intuito de coibir a violência, acabou (como quase tudo o que o ser humano arbitra), completamente deturpada e uma desculpa para a vingança. A exceção casuística foi transformada em regra ordinária, gerando uma “violência divinamente autorizada”. Este é o raciocínio de Karl Hermann Schelkle, a respeito dessa antítese, em particular:
Jesus acusa a casuística de torcer a lei no próprio interesse, transformando-a em puro legalismo. Ele previne contra este abuso e exige cumprimento do mandamento em todo o seu sentido.
Assim, na norma jurídica da pena equivalente; olho por olho, dente por dente (Mt 5,38-41). Originariamente, esta lei foi dada
para pôr um freio à desmedida vingança do homem. A casuística, porém, fez dela um direito à vingança, Jesus exige novamente o sentido da lei, que pede justiça e, além disso, benignidade e ânimo conciliador: “Não resistais ao mau! Se alguém te ferir na face direita, oferece-lhe também a outra!” (Mt 5,39).
Sobre esta perícope, Joachim Jeremias informa que no tempo de Jesus, tal lei, apesar de não estar mais em vigor da forma estritamente expedida no Pentateuco, ainda assim “constituía o fundamento de todo o direito civil”, ou seja, “era usada para estabelecer o princípio de que o grau de punição devia corresponder à gravidade do delito”. Cristo, continua o mesmo autor, “ao contrário, diz aos seus discípulos: no tocante à vossa proteção legal através da lei civil, eu vos proibo de apresentar queixa quando se vos ofende”. J. Jeremias explica que Jesus “escolheu como exemplo uma ofensa particularmente grave, pois a bofetada na face direita, a bofetada com o dorso da mão, é ainda hoje no Oriente a mais humilhante”. Numa palavra:
Jesus, porém, — e isto é muito importante para entender que este assunto não está falando de uma ofensa qualquer: a bofetada humilhante situa-se numa ocasião bem determinada: atinge o discípulo por ser tido como herege.
Isso não é dito expressamente, mas se deduz de um fato constante: sempre que Jesus fala de ofensa, de perseguição, de maldição ou de desonra para os seus, trata-se de um desprezo que eles recebem devido à sua condição de discípulos. Se te desonram chamando-te de herege — diz Jesus — não busques a proteção da lei; ao contrário, sendo capaz de sofrer o ódio e o ultraje, de vencer o mal, de perdoar a injustiça, tu te mostrarás verdadeiro discípulo meu. Aqui, de novo, é mister que alguma coisa tenha precedido: a pessoa se pôs a seguir a Jesus, confessou publicamente sua adesão a ele e é isto que provoca o ódio fanático.
Os demais exemplos concretos dados por Jesus — capa, milha e empréstimo — referem-se a direitos e pontos discutidos pelos
escribas, pois, conforme disse Bornkamm, eles atuavam também como juristas. O fato é que os discípulos precisam ter disposição para agir de acordo com uma justiça diferente da que os homens estabeleceram. Que desafio e contraste com os nossos dias quando parece que, ao menor sinal de algo que possa trazer algum sacrifício de nossa parte para viver a fé, gera-se protestos e outras ações para pressionar o governo a fim de que haja uma atmosfera favorável à fé!

Sexta Antítese
A sexta e última das antíteses refere-se ao texto de Levítico 19.18 com o acréscimo da tradição dos anciãos, ou seja, proveniente do exercício teológico dos escribas e encontrada “nos textos de Qumran, de ódio aos inimigos”. Ela não revoga o que lá se diz, mas amplia, considerável e substancialmente, o mandamento de amor ao próximo, posto que inclui o inimigo. O filósofo alemão Arthur Schopenhauer afirmou que, apesar de a caridade existir como ideal de virtude em praticamente todos os tempos, ela “foi trazida à baila teoricamente e estabelecida como a maior de todas, estendendo-se mesmo aos inimigos, em primeiro lugar pelo cristianismo, cujo maior mérito consiste nisto”.32 Portanto, devido ao desprezo generalizado que havia por parte dos judeus, e não apenas dos escribas, em relação aos publicanos, é que Jesus vai dizer que amar apenas os amigos e os que os cumprimentavam, tornavam eles iguais aos seus irmãos que trabalhavam cobrando impostos para o Estado. A exigência da “nova justiça” era que o comportamento deles fosse imparcial, tal como o de Deus, que faz com que a chuva e o sol, recursos naturais básicos e necessários à sobrevivência humana, sejam distribuídos de forma igualitária a justos e injustos. Como mais tarde será revelado (Jo 13.34), o tipo de amor requerido por Jesus, na perspectiva do Reino, é o mesmo que Ele teve por seus discípulos e vai muito além de amar o semelhante, sobretudo quando este geralmente se parece consigo e pensa exatamente igual a mim.

Perfeição Divina

Com essa exposição, fica claro que a intenção de Jesus não é abolir a Lei, dizer que não há regras, mas justamente o contrário, pois “Ele mostra que o cumprimento tem de exceder a simples letra da lei e que o cumprimento tem de partir do coração”.34 Quanto às situações, foram escolhidas propositalmente por serem as mais corriqueiras e cuja dependência social das respostas era muito grande, daí o domínio exercido pelos escribas sobre as pessoas. No último versículo (48) aparece uma vez mais a expressão teleios e, nesse contexto, conforme Werner Georg Kümmel, “Não pretende designar uma perfeição moral que gradativamente pudesse ser conquistada pelo homem, mas a pureza semelhante à de um animal a ser sacrificado”.35 Como se pode facilmente depreender da conexão desse texto com o versículo 45, o que demonstra que os seres humanos são filhos de Deus, é justamente o fato de estes comportarem-se como o Pai celestial. Portanto, não se exige que os falíveis, mutáveis e fracos seres humanos sejam como Deus no sentido mais impossível da expressão, mas que se identifiquem com sua expressão humana — Jesus Cristo.

EXTRAÍDO DO LIVRO  O SERMÃO DO MONTE
A JUSTIÇA SOB A ÓTICA DE JESUS.
CESAR MOISÉS CARVALHO.

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