JOVENS (Subsídio Teológico Cap 5/ 2º Trim 2017) As Exigências Básicas da Justiça Sob a Ótica de Jesus

Seguindo o raciocínio de Joachim Jeremias, a justiça a ser contrastada agora com a do Reino é a dos fariseus. Enquanto os escribas, tal como apresentado nos Evangelhos, “são mais bem compreendidos como burocratas e também peritos da vida judaica”,1 os fariseus, ou perushim, isto é, do “hebraico parash, separar, interpretar”, expressão que “literalmente significa ‘separados ou separadores’ e pode ser entendida, como ‘intérpretes ou comentadores’, isto é, aqueles que distinguem, separam e expõem a lei”,2 eram judeus piedosos e, pela sua popularidade, considerados “mentores religiosos da ‘ralé’”.3 De acordo com Evaristo Miranda e José Schorr Malca, a “piedade farisaica, como norma para a vida cotidiana, não tinha necessidade de outro centro, de outro lugar, de outro templo que não fosse o próprio homem”.4 Como ambos têm uma posição “pró-fariseus”, eles denominam a prática religiosa desse grupo judaico como “farisianismo”. O que interessa, no momento, a este estudo é o fato de que o referido grupo tinha como característica o ser “leigo, heterogêneo e piedoso”.5 Portanto, como concorda a maioria dos autores, a esmola, a oração e o jejum, eram as exigências básicas da justiça, segundo o judaísmo, e, portanto, muito prezadas pelos fariseus.
         Em que consistia então a “censura” de Jesus? A tradução que traz a palavra “justiça”, no versículo um, em vez de “esmola”, parece expressar mais fielmente a ideia a ser trabalhada pelo Mestre. Na verdade, a maioria dos exegetas afirma que a expressão literal é “fazer a vossa justiça” [dikaiosynê, “retidão”, “justiça”], isto é, realizar as exigências básicas da religião oficial de Israel. Como corretamente observa Dumais, as “três estrofes” (Mt 6.1-8,16-18), estruturadas da forma que aqui está sendo apresentada, deixando o Pai-Nosso para análise à parte, “se estruturam exatamente da mesma maneira, em dois quadros paralelos: mandamento negativo - motivação - sanção; mandamento positivo - motivação - sanção” e, continua o mesmo autor, “estão marcadas pelas mesmas oposições: público / oculto; visto pelos homens / visto pelo Pai; recompensa já recebida / recompensa a receber do Pai”.  O teólogo francês assinala que tal “jogo das oposições mostra que a intenção desta passagem não é exortar à prática dessas três obras de piedade, habituais na comunidade de Mt, mas propor a melhor maneira de as exercer”.  Em outras palavras, tal deve ser praticado, porém, de forma correta e com motivações nobres. Mesmo porque, como observa Joachim Jeremias, o fato de Jesus recorrentemente falar acerca da necessidade de se dar esmolas aos pobres só pode ser entendido pelos leitores modernos quando se descobre, ou se tem “em mente que ‘dar esmolas’ no Oriente não é apoio à mendicância, mas a forma da ajuda social por excelência”.8 Alinha-se a Dumais, Élian Cuvillier, ao dissertar a respeito da mesma passagem nos seguintes termos:

O que, em substância, essa reinterpretação manifesta pode ser resumido na forma de uma alternativa: ou uma “ética do parecer”, pela qual o crente tem sua vida assegurada pelo olhar dos outros, ou uma “ética do segredo”, segundo a qual a identidade não depende do que faz o homem sob o olhar dos outros, mas da relação filial com o Pai que vê no segredo. Não se trata tanto de contestar a validade das obras de piedade quanto de sublinhar que a entrada no Reino (em outras palavras: a “recompensa”, [...], w. 1.2.5.16) é concedida de acordo com critérios que não são os do mundo e de sua lógica, à qual pertence a ordem religiosa. Na lógica do Reino dos céus, que é a do segredo e do íntimo, o ato ético ou o gesto de piedade é justamente o inverso do que se pode constatar a olho nu: a justiça do Reino não tem nada a ver com a justiça dos homens. [...] É diante do “Pai” que o sujeito se descobre na verdade. E é por isso que, em vez de se preocupar com as coisas deste mundo, os ouvintes do [Sermão do Monte] são convidados à confiança absoluta no Pai (w. 19-34). Pertencer ao Reino dos céus e sua justiça (w. 33) é viver na confiança, isto é, reinterpretados [e na] compreensão de si mesmo e dos outros como seres em relação (7,12) e não apenas um viver juntos de maneira razoável que a lei, como mandamento, torna possível.


         O tríplice uso da expressão “hipócritas” [hypokritês] (w.2,5,16), termo grego originalmente utilizado no teatro para os atores que representavam, denota a seriedade com que são encarados os que fazem o bem com motivações escusas. É impossível não lembrar-se de Mateus 25.31-46, quando as ovelhas forem separadas dos bodes, justamente por causa das boas obras executadas. Obras que, vale ressaltar, eram praticadas sem nenhum outro interesse por parte de quem praticava a não ser o bem da pessoa necessitada. Aliás, os benfeitores estavam fazendo ao próprio Filho de Deus, mas eles sequer sabiam disso! Nada fora feito para representar, pois eles sequer sabiam que estavam sendo observados e suas obras anotadas e contabilizadas. É assim que, conforme observa Dumais, uma “ação praticada diante do Pai em segredo’ (w. 4.6.18) não significa uma ação secreta’; designa toda ação, até pública, que se faz de verdade diante do Pai, que vê o que está oculto’, isto é, que penetra a intenção profunda dos corações”.10 O feito de qualquer um, isto é, qualquer obra, jamais será “oculta” diante dos olhos de quem tudo vê e conhece. Inclusive as ações, não precisam ser necessariamente ocultas, escondidas, pois se não houver outra forma ou local, elas podem ser realizadas publicamente. A intenção com que elas irão acontecer não passará despercebida dos olhos do Pai. Portanto, o que se desaconselha aqui é a dramatização, o representar, o querer passar-se por piedoso, sendo hipócrita. Estes nada devem esperar por parte do Pai.
         A observação do Mestre não fica centrada em apenas o que se pode oferecer ao próximo como uma forma de autoendeusamento, mas ela atinge até mesmo a vida devocional, pois a hipocrisia não poupa nem mesmo esta área. O ponto todo, conforme observa Shelton, é que “Jesus está mais preocupado com a ardilosa orquestração de religiosidade”.11 Uma experiência pessoal talvez ilustre melhor o que está sendo dito. Há muitos anos, quando ainda residia no interior do Paraná, fui convidado a participar de um evento em uma cidade da região oeste do estado. Lá, após o culto, conheci um ancião que me relatou uma experiência que jamais esquecerei. Ele contou, em lágrimas, que certa feita resolveu contabilizar, pelo resto de sua vida, quantas horas ele havia orado. Comprou um caderno e pôs-se a registrar cada minuto em que “se dirigia” a Deus. Já havia se passado um bom tempo, quando um dia Deus lhe falou que todos aqueles momentos nada tinham valido diante dEle.
 Fora tudo em vão! Aliás, era para ele abandonar aquela prática e destruir aquele caderno, pois estava se tornando um motivo de exaltação pessoal e orgulho. Nunca me esquecerei dessa experiência e o quanto a piedade — inclusive sincera —, pode nos afastar de Deus e nos tornar autólatras. Como afirma Benedict Viviano, o ensinamento dos versículos 5 a 8, “não depreciam a adoração pública como tal, uma vez que Jesus participava nos cultos na sinagoga”.12 O Mestre também chegou a orar em público, e mais de uma vez, pois o ponto é a hipocrisia e não o orar publicamente (Jo 11.41,42; 12.27,28).
Shelton diz que o “jejum era acompanhado tradicionalmente pelos procedimentos de vestir-se com pano de saco, não tomar banho e não ungir o corpo ou a cabeça com óleo”. 
A questão da hipocrisia, do representar e ser “ator” fica ainda mais evidente quando se sabe que, de acordo com o mesmo autor, “Alguns fariseus faziam um espetáculo com os jejuns que observavam, cobrindo a cabeça ou aplicando copiosas demãos de cinza e sujeira no rosto, tornando-os pouco reconhecíveis”.13 O Mestre não condena o jejum e pressupõe sua legitimidade ao recomendar a forma natural com que se deve proceder nesse ato (w.17,18). Viviano observa que, de acordo com o Didaquê 8,1, “os judeus jejuavam em segredo às segundas e quintas- feiras, ao passo que os cristãos escolheram as quartas e sextas-feiras (esta última em memória do sofrimento de Jesus)”.14 Portanto, o jejum consciente, não mecânico, discreto e em sinal de humilhação, torna-se importante recurso ao lado da oração. Na verdade, conforme instruiu o Senhor Jesus Cristo, o jejum e a oração são aliados dos que se colocam à disposição de Deus para auxiliar as pessoas no processo de libertação de possessões malignas (Mt 17.21).

Finalmente, resta perguntar pelas três ocorrências da expressão “teu Pai, que vê o que está oculto te recompensará” (w.6,18; no v.4 “secreto”,), em que consiste tal “recompensa”. De acordo com Dumais, a referida recompensa não está definida, mas o “conjunto da passagem e o contexto que a acompanha (cf. Mt 5,43-48; 6,9- 13) convidam a ligar o tema da recompensa ao do Pai e da relação Pai-filho”. Isto é, mantendo o “mistério da recompensa inteiramente intato, pode-se pensar que, em resposta aos gestos humanos, expressivos do estar-diante-do-Pai, o que vai acontecer, em primeiro lugar, é a reciprocidade da relação por parte do Pai”. Assim, tais “atos religiosos autênticos vão produzir seus frutos intrínsecos: Deus retorna (‘dá em retorno’) a relação que se estabelece com ele”, ou seja, a “recompensa é, de certo modo, imanente: consiste no crescimento da relação Pai-filho”.15 O que pode ser mais importante que tal relação? Moisés a suplicou e Davi não queria que se retirasse dele o Espírito do Senhor (Êx 33.1-23; SI 51.11). Quanto ao fato de tais atos gerarem galardão no Tribunal de Cristo (1 Co 3.12-15), não há como se concluir, mas o certo é que o Mestre fala de galardão e recompensa, sejam estas na eternidade, no Julgamento das Nações ou agora mesmo com a presença do seu Espírito, o importante é agradar ao Senhor e ter comunhão com Ele. Entretanto, é importante lembrar que a questão toda gira em torno da discrição e sinceridade, mas isso também não significa ocultação de quem se é ou viver uma espécie de “criptocristianismo”, pois o sal da Terra e a luz do mundo têm uma missão a cumprir: revelar à humanidade a “nova justiça”, excedendo a justiça dos fariseus, isto é, dos religiosos.

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